Há uma tendência cada vez mais forte em olhar o
passado em busca de ideias, seja na moda ou nas artes. Até Hollywood parece
nostálgica ao dar o Oscar a "O Artista", um filme mudo em preto e
branco. Na fotografia, usam-se filtros que deixam as fotos com cara de antigas
pelo aplicativo Instagram. É nesse contexto saudosista que Meia-noite em Paris
(2011), de Woody Allen, se encaixa: uma obra que celebra o passado e dá ao
espectador muitas reflexões sobre o tema.
Gil (Owen Wilson), o protagonista, busca no passado a
segurança e conforto que não encontra no presente, no qual é constantemente
cobrado e avaliado pelos colegas, sogros e até pela noiva. Apesar do sucesso
como roteirista de filmes populares de Hollywood, Gil mantém o sonho de se
tornar escritor e busca em Paris a inspiração para criar sua história e provar
que pode ser bem mais que um sujeito
mediano.
A Paris apresentada por Allen é encantadoramente
glamourosa. Não há problemas na cidade, apenas prédios históricos, pessoas
interessantes e ambientes belissimamente decorados. Quase como um lindo cartão
postal em movimento. No decorrer da trama, a cidade ganha novas significações,
tornando-se um símbolo da efervescência cultural, inspiração dos poetas e
artistas de décadas passadas. Nesse sentido, a fotografia é eficiente em
explorar os pontos mais conhecidos de Paris, tornando-a um cenário que
transmite cultura e história a cada frame. A bela trilha sonora também ajuda a
criar esse ambiente charmoso com canções de Cole Poter (em nenhum momento é
ouvido músicas atuais, mesmo com a cantora Carla Bruni no elenco).
Há outros recursos que ajudam a separar "passado
dourado" e o "presente cinzento". Se na atualidade, em que o protagonista
vive um noivado infeliz com uma mulher superficial (que prefere fazer compras
que conhecer os pontos históricos de Paris), as cores são mais frias, quando
Gil é transportado “magicamente” para o passado, o filme adota cores mais
quentes, como o dourado e o laranja, acentuando essa mudança e, principalmente,
sugerindo aquela época como mais viva, culturalmente ativa.
É interessante também observar como os artistas que
aparecem no filme tornam-se, eles mesmos, representantes máximos dos movimentos
que participaram. Dessa maneira, só para citar os mais conhecidos, Picasso
representa o ápice do cubismo, Dalí o surrealismo, Hemingway a literatura e
Bunuel o cinema experimental francês. Podemos até extrapolar esse conceito e
dizer que todos esses artistas apresentados no longa funcionam como símbolos da
arte gerada na década de 20 e reforçam a ideia do passado superior e
infinitamente mais interessante.
Se no presente Gil tem como amigo o esnobe Paul, que
acredita conhecer tudo sobre todos os assuntos e estar atualizado em todos os
temas (chegando a discutir com os guias das exposições), no passado o
protagonista é amigo de Hemingway, um escritor celebrado. Enquanto na
atualidade Gil é calado constantemente pelos amigos "cultos", que
desejam ter a palavra final sobre os assuntos, no passado os grandes gênios
pedem sua opinião sobre diferentes temas. Tanto que só no passado o
protagonista tem coragem de revelar os manuscritos em que trabalha, já que no
presente todos não perdem uma oportunidade de cobrá-lo por não ser tão rico ou
tão culto quanto os outros que o cercam.
O contraste entre as décadas aumenta ainda mais quando
Gil fica divido entre a noiva do presente, Inez, e Adriana, a mulher dos anos
20. Elas tornam-se representações de suas respectivas
épocas: enquanto Inez é superficial, interessada em dinheiro, egoísta e pouco
se importa com os desejos de Gil,
Adriana revela-se encantadora e sempre disposta a apoiar o protagonista.
Inez é a efemeridade atual, enquanto Adriana é o reconforto do passado. Podemos
até identificar que Inez representa o “american way of life”, com seu orgulho
de ser americana/capitalista (ela chega a dizer várias vezes que nunca trocaria
os Estados Unidos pela França), enquanto Adriana representa o antigo estilo de
vida “boêmio” francês: envolvida com a arte e não se importando com bens
materiais ou com o futuro.
A contradição entre as duas fica ainda mais evidente
com a fotografia do filme: Inez nunca aparece em close, estando sempre em
planos mais abertos, já que pouco fala de si, de seus sentimentos. Por outro
lado, somos apresentados a Adriana em um belo close de seu rosto, já que logo
no primeiro encontro ela conta toda sua
história de estudante de moda e amante de gênios da pintura e literatura, com
uma sinceridade encantadora. Esse jogo de cenas nos ajuda a percerber como o
protagonista se sente, já que Inez está sempre distante e Adriana, por outro
lado, compartilha a visão de mundo, desejos e objetivos.
É possível até relacionar o protagonista com o próprio
Allen, roteirista do filme, uma vez que o diretor parece cada vez mais avesso
aos sistemas industriais de Hollywood. Enquanto na capital mundial do cinema
investem-se milhões de dólares em efeitos especiais, tecnologia 3D e histórias
escapistas com cunho de entretenimento, Allen nos oferece filmes
“tradicionais”, com foco nos personagens e seu desenvolvimento. O diretor,
assim como o protagonista, parece se espelhar nos clássicos para criar suas
obras e não compartilha o desejo de mídia e estrelato dos colegas, tanto que
nem compareceu ao Oscar para ganhar o prêmio de melhor roteiro original nesse
ano. Chega até ser curioso que o personagem do romance de Gil, por sua vez,
seja uma representação dele mesmo (um homem que trabalha em uma loja retrô e
deseja voltar para o passado), estabelecendo, dessa maneira, uma relação
cíclica entre Allen, Gil e o protagonista do romance.
Por fim, o filme não oferece explicações ou tenta ser
realista, mas propõe um debate sobre essa sensação cada vez mais forte de que o
passado parece sempre melhor. Com maturidade, Gil parece aceitar o que o rival
Paul diz dos primeiros encontros, de que a nostalgia é uma forma de negação do
presente, uma noção errada de que sempre a época passada é melhor do que aquela
em que vivemos. Utilizando com maestria diversos recursos do cinema, como a
fotografia, direção de arte, trilha sonora e iluminação, Allen consegue criar
cenas e situações que transmitem o questionamento central do filme sem abusar
de clichês ou diálogos manjados.
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